181. A parábola do
bom samaritano é entendida como paradigma do cuidado. Mesmo que seja possível
outras interpretações, parece-nos oportuno evidenciar, neste contexto da
Campanha da Fraternidade, o bom samaritano como uma figura emblemática para o
cuidado que se espera da parte dos profissionais e servidores da saúde. “Esta
parábola, em si mesma, exprime uma verdade profundamente cristã e, ao mesmo
tempo, muitíssimo humana universalmente. Não é sem motivo que até na linguagem
corrente se designa obra de bom samaritano qualquer atividade em favor dos
homens que sofrem ou precisam de ajuda”.
182. A parábola
ajuda a pensar sobre a solidariedade, como também acerca da vulnerabilidade a
que todos estamos condicionados, desde a criação. De fato, os dois relatos da
criação do homem e da mulher, de alguma maneira nos remetem a esta ambiguidade
que nos constitui. O primeiro relato sublinha a dignidade humana. Nós somos
imagem e semelhança de Deus. Manifestamos uns para os outros a presença de
Deus. O segundo relato lembra a matéria de que somos feitos: do húmus, do barro
da terra. Assim, temos a dignidade de Deus, mas somos modelados pela
fragilidade, pela precariedade. Carregamos a marca da criaturalidade, ou seja,
da dependência e não a autossuficiência. Ninguém vive sozinho!
183. Essa condição
faz lembrar outra imagem. A imagem do profeta Jeremias. Deus nos criou do
barro, mas temos a possibilidade de ser constantemente recriados. Foi isso que
Deus revelou ao profeta: “Desce à casa do oleiro. Aí
eu comunicarei minha palavra a você. Desci até a casa do oleiro e o encontrei
fazendo um objeto no torno. O objeto que ele estava fazendo se deformou, mas
ele aproveitou o barro e fez outro objeto, conforme lhe pareceu melhor. Então
veio a mim a palavra de Deus: por acaso não posso fazer com vocês da mesma
forma como agiu esse oleiro? Como barro nas mãos do oleiro, assim vocês estão
em minhas mãos!” (cf. Jr 18,1-6)
184. A parábola do
Bom Samaritano nos lembra a condição de fragilidade humana, mas também indica
que os seguidores de Jesus devem descobrir a importância do cuidado. Esse é, de
fato, o apelo do texto evangélico: reconhecer a condição de fragilidade e de
vulnerabilidade de todo ser humano e libertar do temor da proximidade sanadora
do outro. A fragilidade somente se cura mediante a proximidade daquele que se
dispõe a cuidar do debilitado. Cuida-se da própria vulnerabilidade quando se
consente a proximidade do outro.
185. O samaritano é
aquele que em face da necessidade do outro a assimila e se deixa transformar
por ela. Não só porque cuida do ferido e lhe dá abrigo, mas porque o faz em
prejuízo dos seus próprios planos iniciais. Tornar-se próximo compreende uma
vulnerabilidade ativa, um aceitar tornar-se frágil nas mãos de outrem. O que
essa dimensão revela é outra dimensão da fragilidade humana, uma dimensão ativa
que se manifesta em ato de entrega ao projeto do outro, o que implica deixar-se
nas mãos de quem se cuida.
186. Essa atitude é
revelada nos sete verbos desta parábola e indica um modo de ser diante do
outro, que pode iluminar o engajamento da Igreja e dos cristãos no campo da
saúde pública.
a. Ver – a primeira atitude do samaritano
que descia pelo caminho foi enxergar a realidade. Ele não ignorou a presença de
alguém caído, de alguém que teve seus direitos violentados e que se encontra à
margem da estrada. Esta atitude, porém, não é suficiente. O ‘sacerdote’ e o
‘levita’ que haviam passado antes dele também ‘viram’, mas passaram adiante.
“Bom samaritano é todo homem que se detém junto ao sofrimento de outro homem,
seja qual for o sofrimento”.
b. Compadecer-se – a percepção da presença do caído
conduziu o Samaritano à atitude de compaixão. Ele deixou-se afetar pela
presença do violentado que jazia quase morto. A compaixão diante da fragilidade
do outro desencadeou as demais atitudes tomadas pelo samaritano. “Bom
samaritano é todo homem sensível ao sofrimento de outrem, o homem que se
‘comove’ diante da desgraça do próximo. Se Cristo, conhecedor do íntimo do
homem põe em realce esta comoção, quer dizer que ela é importante para todo o
nosso modo de comportar-nos diante do sofrimento de outrem. É necessário,
portanto cultivar em si próprio esta sensibilidade do coração, que se demonstra
na compaixão por quem sofre. Por vezes esta compaixão acaba por ser a única ou
a principal expressão do nosso amor e da nossa solidariedade com o homem que
sofre”.
c. Aproximar-se – ao contrário dos que o antecederam,
o viajante estrangeiro aproximou-se do caído, foi ao seu encontro, não passou
adiante. No homem assaltado, ferido, necessitado de cuidado, reconheceu seu
próximo, apesar das muitas diferenças entre ambos.
d. Curar – a presença do outro exige cuidado.
A aproximação, a compaixão não são simplesmente sentimentos benevolentes
voltados ao outro. Elas se tornam obra, se transformam em ação que lança mão
dos elementos que tem disponíveis para salvar o outro.
e. Colocar no próprio animal – este passo também
é significativo. Ele colocou a serviço do outro os próprios bens. Não temeu
disponibilizar ao desconhecido ferido tudo o que dispunha: primeiro seu meio de
transporte, depois o que trazia para seu autocuidado, dinheiro.
f. Levar à hospedaria – o samaritano não
só viu, aproximou-se, curou, colocou no próprio animal, por fim, também mudou o
seu itinerário, adaptando-se para poder atender aquele necessitado. E ainda
mais: ele acabou mobilizanddo e envolvendo outras pessoas e estruturas para não
deixar morrer aquele que fora assaltado. Isso é muito importante, pois nem
sempre conseguimos responder a todas as demandas, mas podemos mobilizar outras
forças para atender e cuidar de quem sofre. Trata-se de criar parcerias, ser
referência e contrarreferência. “A Igreja em sua missão profética, é chamada a
anunciar o Reino aos doentes e a todos os que sofrem, cuidando para que seus
direitos sejam reconhecidos e respeitados, assim como a denunciar o pecado e
suas raízes históricas, sociais, políticas e econômicas, que produzem males
como doença e a morte”.
g. Cuidar – esse é o sétimo verbo e expressa o
conjunto da intervenção do samaritano. Trata-se de um cuidado coletivo, que
envolveu outros personagens, recursos financeiros, estruturas que o viajante
não dispunha e o compromisso de retornar. Mesmo que ele tenha dado sequência à
sua viagem, ela não teve o mesmo fim, nem se limitou a cumprir os objetivos
iniciais. A razão é que agora ela incluiu outra pessoa, um compromisso que não
estava planejado no início da viagem, mas não pode mais ser ignorado. Cuidar
passa a ser uma missão.
187. A figura do
bom samaritano assume a condição de modelo para a ação evangelizadora da Igreja
no campo da saúde e no campo da defesa das políticas públicas. Seguindo o
exemplo da parábola, “na comunhão com Cristo morto e ressuscitado, a Igreja se
transforma em lugar de acolhida, em que a vida é respeitada, defendida, amada e
servida – lugar de esperança, em que todo o peregrino cansado ou enfermo, que
busca sentido para o que está vivendo, pode viver de maneira saudável e
salvífica seu sofrimento e sua morte à luz da ressurreição”.
188. “O espírito do
samaritano deve impulsionar o trabalho da igreja. Como mãe amorosa, ela deve
aproximar-se dos doentes, dos fracos, dos feridos, de todos os que se encontram
jogados no caminho a fim de acolhê-los, cuidar deles, infundir-lhes força e
esperança. No estabelecimento da saúde física está em jogo mais que a
vitória imediata sobre a enfermidade. Quando nos aproximamos dos enfermos,
aproximamo-nos de todo ser humano de suas relações porque a enfermidade o afeta
integralmente”.
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